Setor3



Crédito: Kiko Ferrite




Para dar continuidade à série de entrevistas sobre cultura de paz, o Setor3 entrevistou a especialista nesse tema e jornalista Lia Diskin, fundadora da Associação Palas Athena . Ela também coordena um programa da Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura, chamado Comitê Paulista da Década da Cultura de Paz.

Uma das principais ações desse Comitê foram os fóruns sobre temas importantes e com especialistas renomados para discutir e mostrar ações em prol da cultura da paz. No ano de 2011, aconteceram oito encontros, que focaram nos seguintes temas: Educadores da Paz – Programa de Educação Formativa8ª Semana Martin Luther KingA arte de viver e conviver – Escola de Perdão e ReconciliaçãoMedicina Integrativa – uma abordagem sistêmica em saúdeNascimentos humanizados – promovendo a paz e não violênciaO que nos faz humanos? – bases biológicas e culturais da convivência30ª Semana Gandhi – A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte; e Cooperar e inovar – uma pedagogia cristã. Todas essas palestras reuniram interessados pelo tema o auditório do Museu de Arte Moderna, localizado na Avenida Paulista, em São Paulo, entre março e novembro.

Para comemorar o ciclo do trabalho de 10 anos, no final de 2010, foi lançado a publicação Cultura de Paz: da reflexão à ação, produzida e lançada pelo Fórum do Comitê para a Década da Cultura de Paz. Reúne algumas práticas que marcaram esse trabalho, relacionada com respeito à vida e à prática da não violência por meio de ações de educação, do diálogo e da cooperação. Também traz um resgate da memória do processo da década no Brasil.

“É uma cultura. Um modelo de ser e estarmos no mundo, no qual há a confiabilidade mútua, o respeito e a cooperação deixam de ser simples aspirações intelectuais, poéticas e românticas, para se tornarem um exercício de cidadania. Não estamos falando de nada sobrenatural. Estão acontecendo coisas, mas precisamos nos educador para isso. Simplesmente precisamos nos educar para isso”, ressaltou.

Confira abaixo entrevista com a jornalista sobre a importância do Comitê, ações concretas e suas expectativas para o ano que se inicia.

Portal Setor3 – Após uma década de atuação e discussão sobre o tema de cultura de paz, quais foram os principais avanços neste ano?

Lia Diskin: Você tem coisas extremamente significativas nessa década. Por exemplo, a discussão sobre e legitimidade de um pai bater em sua filha, que acaba de ser aprovada (refere-se à Lei da Palmada, aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, no dia 14/12/2011). Durante toda a história da humanidade, ninguém interferia na vida privada, nem o Estado, nem a Igreja. Hoje você coloca como direito para uma criança, que ela não

precisa e não pode ser educada pelo sofrimento, pela humilhação, pelo castigo, pela carência, ou privação. Faz pouco tempo atrás tivemos a questão bullying. Temos uma lei que literalmente condena isso nas salas de aula. Existe inclusive uma penalidade socioeducativa para crianças que praticam o bullying sobre o colega. Toda a vida existiu isso nas escolas, na vida familiar. Hoje começa a resultar intolerável, inaceitável esse tipo de comportamento. Se formos um pouco mais atrás, em 2006, nós temos a lei Maria da Penha, que protege o direito da mulher contra a violência e abuso. Essas questões começam a ficar cada vez mais claras, antes estava tudo muito naturalizado. Era assim, porque era assim. Agora não, era assim por uma escolha premeditada cultural que perpetuava todo comportamento e modelo de que as mulheres pertenciam aos homens. A família não é mais sagrada, as crianças não pode ser abusadas dentro do lar, as mulheres não podem ser humilhadas dentro de casa e ainda tem a questão do bullying. Eu reputo isso ao fato de que estamos tendo uma maior sensibilidade à violência. Antes vista como uma paisagem da vida cotidiana, hoje ela é vista literalmente como algo intruso, sem legitimidade. Nós estamos fazendo com que a violência não fique impune.

Portal Setor3- Recentemente foi lançada o Mapa da Violência 2012, que aponta a descentralização dos casos de homicídio. Como você avalia esse fenômeno?

LD: Acredito que está tendo mais denúncias. Que mulher denunciava seu marido por ser estuprada? Inconcebível em uma geração atrás. A mulher hoje vai à delegacia e fala: meu marido tem relações sexuais comigo contra minha vontade. Isso é estupro. Não interessa que estejam casados, de papel assinado. Hoje essa mulher denuncia. Hoje um funcionário que recebe abuso moral denuncia. Antes não fazia isso. Antes era um ato corriqueiro. As pessoas se submetiam a isso e elas achavam natural.

Portal Setor3- Como a senhora avalia esses acontecimentos da Primavera Árabe nas regiões orientais? Como enxerga a articulação das populações e de que forma a cultura de paz colabora para uma vida política ativa?

LD: Acredito que no caso dos países árabes foi um processo acumulativo. As novas gerações começaram a ter acesso a uma série de informações que as gerações mais antigas não tinham, seja por unicamente existia a imprensa escrita, seja por ter sempre monitorado todos os sistemas da mídia. Com as novas tecnologias, você não tem como monitorar. Literalmente não tem como coibir. A juventude dos países árabes teve acesso ao mundo e a informações. Ela não queria mais dinastias que governavam a mais de 30 anos seus países. Ela quer ter direito a novas escolhas;  a partir daí que ela sai nas ruas. As outras gerações já se acomodaram e simplesmente já se conformaram com a situação. Foi a juventude universitária que foi para as ruas. Aliás, há um livro belíssimo que se tornou para eles um guia de mobilização, Do totalitarismo à Democracia – Uma Estrutura Conceitual para a Libertação , do cientista político Gene Sharp. Está em português e disponível para download. Foi um objeto de estudo a esses jovens sobre como provocar transformações sociais sem ter que recorrer à violência, simplesmente por que você não tem armas, nem instrumentos de uso disso. A obra fala de boicotes, das passeatas, das manifestações constantes. Ele foi que inaugurou a cadeira de estudos de mediação de conflitos e da paz na Universidade de Harvard.

Portal Setor3 – Quais foram as principais repercussões do Comitê, além de reunir cada vez mais pessoas interessadas por esse tema no auditório do Masp?

LD: O Comitê foi criando essas articulações. Por exemplo, do Comitê saiu o Conselho Parlamentar de Cultura de Paz, dentro da Assembléia Legislativa. Cuidado, dentro desse Comitê também surgiu o Comitê de Londrina, que acaba de ganhar uma lei proibindo a comercialização, a fabricação e a importação de brinquedos de armas. Isso é extraordinário. Londrina não se pode mais exibir em nenhuma casa de brinquedo, armas. Eles se formaram conosco. A UMAPAZ (Universidade Aberta do Meio Ambiente e da Cultura de Paz) saiu dos encontros que tínhamos chamado Rede Gandhi.

Portal Setor3 – Após o lançamento da publicação Cultura de Paz: da reflexão à ação, tiveram repercussões para políticas públicas, por exemplo?

LD: Enormemente. Aqui tem uma série de projetos, programas de caráter educacionais de grande parte por educadores. Alguns deles envolvem especificamente segurança pública. Aqui temos a capacitação Convivência democrática e ética solidária, que integrou as ações conjuntas da parceria entre seis agências das Nações Unidas (ONU), como: PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes), Unicef, Unesco, Un-Habitat (órgão da ONU voltado ao direito da moradia) e OIT (Organização Internacional do Trabalho). Também envolve o Ministério da Justiça para o Programa de Segurança Pública com Cidadania, em que são trabalhadas estratégicas de prevenção à violência com foco nas escolas e nos jovens. Você tem aqui um elemento extremamente interessante é a polícia pacificadora. Ainda não pensamos com discernimento o que significado isso. Até muito pouco tempo, a polícia não tinha outra função a não ser a repressão de desvios comportamentais. Quando você dá para ela a função de pacificar: negociar e ouvir conflitos, para criar minimamente um clima de confiabilidade, de estabilidade e equilíbrio. Simplesmente você está dando outras competências para a polícia.

Portal Setor3- Quais são suas perspectivas para 2012?

LD: Imensas. Muito mais eventos. Estamos desenvolvendo uma sensibilidade para violência. Coisas que antes eram mais admitidas, hoje não são mais. A gente não terminou 2011 e já tem uma batelada de compromissos para 2012, especificamente na área da educação. Em Caxias do Sul (RS), o programa de Contagem (MG) que foi para um grupo de educadores, policiais e outros profissionais. Esse programa foi adotado por Maria Campos, a prefeita de Contagem. Ela quer o mesmo programa para todas as escolas da cidade mineira. Trata-se do programa Convivência Democrática e Ética Solidária. Obviamente é cultura de paz. Lauro de Freitas (BA) e Vitória (ES) também terão a mesma capacitação. Por que? Essas três cidades foram escolhidas por esses seis órgãos da ONU para desenvolver espaços pilotos de práticas de natureza e convivência cidadã. Além disso, tem Chapecó (SC), que pediu o mesmo programa para escolas da região. Não pára nunca.

Portal Setor3 – O que era uma década do Comitê continuará?

LD: Em uma década você não transforma a cultura. Para mudar uma cultura, no mínimo, precisa de duas gerações. 50 anos. Mudar a maneira de ser, de se posicionar com o mundo. Os fóruns, esses encontros mensais, se manifestaram de maneira muito eficiente. Agora os interessados podem acessar todos os conteúdos discutidos no blog. Além dos fóruns, há cursos e seminários. Eu mesma irei ministrar um curso de formação em ética cidadã e cultura de paz, em 10 seminários, com uma carga horária de 110 horas. Precisa de novas pessoas. Literalmente multiplicar.

Portal Setor3 – Gostaríamos de uma mensagem aos leitores do Setor3 para 2012. Será um ano marcante com a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e outras ações. O que você gostaria de comentar para nossos leitores?

LD: Primeiro que a ação deles não se paute pela repercussão que há nos encontros internacionais, ou documentos assinados pelos países, ou deixem de assinar. Os países assinam e deixam de assinar na medida em que a população manifesta, pressiona e demanda. Esse é o nosso trabalho. Se a gente vai se mobilizar, ou se desmobilizar pelo fato de chegar ou não a um acordo. Simplesmente estamos abrindo mão do direito de ser cidadão. Vão manifestar acordos, na medida em que sejamos capazes e inteligentes de nos mobilizar e fazer propostas. Essa é a nossa função. O que a gente vê muito é que a pessoa se engaja se tem repercussão. Se ela não vê repercussão, não se engaja. Nunca vai ter transformação, se eu me engajo independente da repercussão. Além do mais, estou subestimando meu poder. Vai ter repercussão, na medida em que eu me engaje. Focar nos propósitos, não interessa o que fazem os outros.

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