Ivani Cardoso – Contec Brasil

 

Confira a entrevista original no site da Contec Brasil

Por Ivani Cardoso

A tecnologia ajuda a rever o que está distorcido ou esquecido no processo de aprendizagem. Essa frase é da jornalista, escritora e conferencista internacional Lia Diskin, cofundadora da Associação Palas Athena, de São Paulo. Ela defende a inovação na escola e garante que é muito melhor aprender matemática com jogos do que com fórmulas: “O conhecimento vem para resgatar esse poder ilimitado e extraordinário do prazer de aprender”. Há anos ela trabalha com o tema cultura de paz e não violência e recebeu Medalha da Associação Cultural Internacional Gibran (ACIGI) por “Acrescentar ao Progresso do Ocidente a Sabedoria do Oriente” (1986). Recebeu o Prêmio Internacional da Jamnalal Bajaj Foundation na Índia, pela difusão de valores gandhianos fora do país em 2010. Recebeu da UNESCO o Diploma de Reconhecimento por sua contribuição na área de Direitos Humanos e Cultura de Paz durante as comemorações dos 60 anos da UNESCO, em 2006.

Lia nasceu na Argentina, está há 42 anos no Brasil, é criadora de dezenas de programas culturais e sócioeducativos e coordenadora do Comitê da Cultura de Paz – um programa da UNESCO. Ao mesmo tempo em que reconhece que estamos vivendo tempos difíceis, em um ponto difícil de encontrar saídas, ela não perde o otimismo, principalmente quando fala em Educação. Entre os fatos positivos acontecendo, ela cita exemplos de várias escolas públicas do Estado de São Paulo que adotaram a mediação de conflitos em seu cotidiano e com ótimos resultados. “É um jeito de mostrar que há limites a serem respeitados e que há uma força unindo todos: o desejo de aprender. Sem isso a escola vira não um teatro, mas uma ópera bufa. A educação exige um novo olhar para todos os envolvidos. Professores e alunos estão aprendendo juntos. Aprender não é sofrer, é celebrar, é se alegrar, é brincar. E ainda bem que há tantas novas tecnologias para facilitar esse tipo de aprendizagem”.

Os jovens de hoje estão alienados, como muitos dizem?
Não, ao contrário, a meninada de hoje está muito mais consciente, mais ligada na natureza, está questionando o uso do carro e optando por usar a bicicleta em uma cidade como São Paulo. Os jovens estão abrindo mão de viajar para os Estados Unidos para visitar comunidades africanas, bolivianas, frentes de trabalho e lugares assim. A estrutura que está aí é que é ruim e não os jovens. Vemos essa situação terrível acontecendo no Maranhão, mas sabemos que há muito tempo está assim, que 70% dos detentos são reincidentes e não é só aqui não, é no mundo inteiro. O sistema penitenciário precisa ser revisto. Como podemos querer reparar o sofrimento que alguém causou provocando o mesmo sofrimento, ou maior sofrimento ainda?

O que há de errado com o nosso sistema educacional?
Por que a aprendizagem é associada a sacrifício? Aprender tem que ser divertido, tem que ser um prazer extraordinário e que pode ser adquirido de várias formas, de várias fontes e com vários instrumentos. O ser humano é criativo e, desde pequeno, tem a vocação para saber, para aprender. Felizmente hoje já se fala em metodologia lúdica na educação e é isso que está correto.

E o uso das novas tecnologias auxilia ou atrapalha a educação?
A tecnologia ajuda a rever o que está distorcido ou esquecido no processo de aprendizagem. É muito melhor aprender matemática com jogos do que com fórmulas. O conhecimento vem para resgatar esse poder ilimitado e extraordinário do prazer de aprender. O uso das redes sociais é assumido pelos jovens porque representa um caminho natural para a companhia, para a troca.

Que outros benefícios a tecnologia traz para a educação?
Ela nos permite utilizar o processo comparativo que antes não tínhamos. Os alunos hoje recebem informações diferentes de lugares diferentes, mas têm meios para procurar a resposta. A manifestação nacionalista, ideológica e chauvinista não é mais possível. Hoje não há mais lugar para ocultar nada, estamos vivendo tempos de transparência em tudo, para o bem e para o mal. Claro que tem o outro lado também, há muita transparência, mas não temos mais privacidade e estamos lidando com a fragilidade da exposição.

E como fica a posição do professor nesse panorama?
O professor não pode ter medo de aprender junto com os seus alunos. Pela primeira vez na história da humanidade esta geração de jovens detém um conhecimento maior do que seus pais ou professores. Antes, os mais velhos exerciam o poder transferindo a experiência e o conhecimento para os mais novos. Os jovens de hoje têm mais poder porque eles têm mais conhecimento, e isso cria situações de conflito. Se o jovem não estiver preparado para lidar com esse conhecimento, que dá poder, ele poderá desenvolver a soberba, a arrogância, a autoconfiança excessiva e outros comportamentos que não são saudáveis.

Qual é a melhor forma de o professor lidar com essa situação?
O professor tem que entender que hoje ele não é mais a fonte de transferência do conhecimento e sim deve ser um facilitador ao acesso desse conhecimento e ao talento do aluno. O professor que consegue enxergar essa verdade percebe que o aluno não quer só o conhecimento, ele também quer vínculos, ele quer a sensação de pertencimento, ele quer o seu porto seguro para ajudá-lo a aquietar a sua turbulência interna. E isso a Internet não traz. Esse é o papel mais importante do professor de hoje.

Esse processo não tem volta?
Não só não tem volta como vai demorar décadas para ser compreendido, adaptado e metabolizado. Essas mudanças não acontecem de uma hora para outra, elas levam de duas a três gerações para se concretizarem. E esse tempo vem carregado de incertezas, inseguranças, insatisfações, ansiedades, depressões. As crianças e os jovens, por sua vez, estão passando por problemas de déficit de atenção e não estão conseguindo focar em nada. Há informação demais e tudo é muito atraente, e o tempo todo. Esse tipo de sociedade cria uma situação perversa. Oferece um deleite, mas não dá tempo para desfrutá-lo. É mais ou menos a metáfora da fruta madura que quando vai ser comida alguém tira da boca no exato momento de experimentar. Isso vai criando frustração porque somos criaturas de experiência e não apenas de expectativas.

E como ficam as relações pais e filhos nesse cenário?
Também passam por momentos críticos porque até então esse cenário era inimaginável. Estamos todos perplexos com o que está ocorrendo. Os filhos hoje dão conselhos sobre relacionamentos amorosos para os pais. A vida está nos forçando a mudar atitudes enquanto o ser humano prefere sempre ficar apegado à tendência normal de repetição, não quer sair da zona de conforto que dá uma segurança, mesmo que falsa. O importante é pensar que as mudanças e a possibilidade de sair dessa zona de segurança podem trazer benefícios. Antes era normal e elogiado o funcionário que ficava por mais de 30 anos na mesma empresa até se aposentar. Hoje nem os funcionários nem os patrões querem isso. São muitas variáveis que se oferecem ao mesmo tempo.

E as relações pessoais, como ficam?
Elas também são impactadas por tudo isso. Nosso universo dos afetos está em crise. Mudanças estruturais estão ocorrendo na família. As luzes nem sempre vêm para iluminar, elas também podem ofuscar. São tempos inquietantes, mas são fascinantes. Os jovens estão aprendendo que podem fazer escolhas, mas para fazer escolhas melhores precisam de maturidade. Liberdade não é só garantia de ganho, é de perda também. Os jovens estão percebendo que não podem abocanhar tudo e que é importante aprender a perder.

E as gerações dos pais que hoje têm 50, 60 anos?
Essas gerações foram criadas por outras que viveram as consequências de duas grandes guerras mundiais e as dificuldades que elas trouxeram. Depois isso surgiu a ideia de aproveitar e desfrutar as coisas boas da vida porque poderiam ser passageiras. O grande segredo é ter consciência, em qualquer idade, da nossa interdependência. Os jovens estão aprendendo pela inovação e não mais pela imitação dos pais.
Qual a melhor ferramenta desses novos tempos?
Hoje se fala muito no processo de mediação de conflitos, mas aqui na Palas Athena nós falamos disso há décadas. E qual é o grande segredo da mediação? É essencialmente entender que não se pode atender ao mesmo tempo expectativas diferentes. É preciso negociar, dialogar e ouvir o outro neste novo cenário democrático. Não dá mais para resolver o conflito pelos velhos mecanismos autoritários que hoje não funcionam mais. A proposta da mediação é qualificar a escuta, tentar concluir qual é a necessidade mais urgente, qual é a mais genuína, qual é realmente a prioridade. Não culpar nem se fazer de vítima e sim assumir a sua responsabilidade. As pessoas devem sair do conflito melhores do que entraram.

As escolas fazem mediação?
Sim, felizmente temos vários exemplos inclusive de escolas públicas que adotaram a mediação e com ótimos resultados. É um jeito de mostrar que há limites a serem respeitados e que há uma força unindo todos: o desejo de aprender. Sem isso a escola vira não um teatro, mas uma ópera bufa. A educação exige um novo olhar para todos os envolvidos. Professores e alunos estão aprendendo juntos.

A sociedade passa por tempos de muita violência. Como a senhora avalia essa situação?
Desigualdades gritantes, ódios, humilhações sociais que se arrastam por gerações. Tudo isso existe e é triste, mas pelo menos podemos dizer que atualmente estamos enxergando e não apenas fingindo indiferença. A visibilidade para a realidade é um novo e longo caminho a percorrer. Quando eu vejo os ataques e humilhações às mulheres na Índia e sei que agora homens e mulheres protestam contra isso sinto que estamos no caminho. Quando eu vejo uma menina como a Malala lutar contra os opressores pelo direito de estudar. Ou como no caso da menina que não queria explodir em um atentado terrorista e sim viver, nesses momentos eu sinto que realmente as coisas estão mudando. À medida que você se incomoda com as coisas erradas está dando um passo para ajudar a resolvê-las.

Como a senhora vê as manifestações nas ruas?
É insustentável se falar em qualquer pacto social sem confiança mútua. Na democracia você precisa dessa confiança mútua, ao contrário de regimes totalitaristas que funcionam com a obediência. Grande parte desses jovens que foram às ruas no ano passado {e ela fez questão de ir também, acompanhar e saber o que eles pensavam} estava lá porque um pacto de confiança foi quebrado, quando os políticos que deveriam representá-los, porque votaram nele, não cumpriram com esse pacto. Esse conceito se aplica à política, ao mundo empresarial e a qualquer projeto que deve se sustentar na confiança e no compromisso de não lesar o outro aproveitando-se do poder conferido por um cargo, da falta de meios para verificar as decisões que estão sendo tomadas em nome de muitos outros, anônimos, cidadãos.