Natália Freitas – Setor3

 Aos 65 anos e com uma longa trajetória de estudos e ações em temas como cultura de paz, meditação e educação, Lia Diskin mostra que não está tão perto de parar com suas contribuições para a sociedade. A jornalista e especialista em crítica literária é hoje presidente fundadora da Palas Athena, organização sem fins lucrativos que promove cursos, oficinas, palestras e vivências que visam o aprimoramento da convivência humana.

No final de fevereiro, ela apresentou um dos projetos mais recentes dos quais participou em parceria com a área de tecnologias sociais e desenvolvimento humano do Senac São Paulo: o jogo Diário de Amanhã. Com linguagem didática e acessível, a ferramenta apresenta situações problemáticas de violência e propõe reflexões sobre possíveis saídas. Direcionada a estudantes, foi criada com o intuito de auxiliar educadores na abordagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Lia recebeu o Setor3 em sua sala na sede da Palas Athena e conversou sobre o jogo e o cenário atual para os direitos fundamentais no Brasil.

Portal Setor3 – Por que ensinar direitos humanos para jovens?

Lia Diskin – É muito difícil criar uma cidadania, ou seja, uma compreensão de que estamos dentro de um cenário coletivo no qual pessoas, grupos, entidades, partidos políticos, religiões, cada um tem sua necessidade. Como arbitrar essas demandas de uma maneira legal e legítima? Como você consegue, em um coletivo tão múltiplo, atender essa diversidade de maneira respeitosa e inclusiva? Penso que nós – e quando digo nós, estou falando do planeta inteiro, do momento contemporâneo – estamos nos dirigindo para a compreensão de uma cidadania multicultural, em que as diferenças não são apenas protegidas por lei, mas também legitimadas e respeitadas e, quando não, até promovidas. Quando você não tem esse tipo de base cognitiva desde a infância e juventude, via de regra os atropelos ou a submissão se sobressaem nos povos. São condições degradantes que aconteceram no passado e você perpetua esse passado naturalizando-o, quando é uma construção histórico-cultural que deve ser reparada nos casos de violação de direito.

Portal Setor3 – E hoje a educação no Brasil abre espaço para essa discussão sobre os direitos humanos?

LD – Acredito que ainda é muito novo e o que eu lastimo é que os direitos humanos são vistos como uma carta de intenções distante, na qual as pessoas sentem que não têm o que acrescentar, como contribuir e discutir. Os idosos, por exemplo, não sabem que têm o direito a ter um cuidado na saúde. Quando não há nenhum familiar que possa cuidar deles, o Estado é o responsável. Mesma coisa com as crianças, elas não reconhecem a si mesmas com direitos, ou se reconhecem com direitos muito atrelados ao interesse e ao gosto imediatos. Não, por exemplo, com o direito à educação, ao lazer, à cultura. Não é suficiente que haja programações nos teatros, cinemas e museus. Tem que existir acesso a isso. Então penso que ainda não temos uma educação para os direitos humanos. O tema não entrou na grade transversalmente – porque não é uma disciplina, tem que estar na dinâmica da construção democrática do dia a dia das escolas. Eu venho de uma época em que quando a gente tinha um comportamento indevido, era chamado pelo nome e colocado olhando a parede diante de toda a turma. E ficava 15, 20 minutos. Essa era a maneira de “educar”. Acreditava-se que provocando um vexame perante o coletivo, você se conteria no futuro porque “experimentou a dor” desse comportamento. Obviamente se chegou à conclusão de que essa disciplina acirrava a revolta. Hoje jamais um professor se permitiria fazer isso, porque seria considerado bullying. Então estamos avançando, sem dúvida temos muito mais sensibilidade do que tínhamos 20 ou 40 anos atrás.

Portal Setor3 – Essa lógica punitiva presente na sociedade atrapalha a percepção das pessoas?

LD – Infelizmente isso começa no seio da família. Quando uma criança faz uma traquinagem ou algo que afronta o pai ou a mãe, mandam-na dormir sem sobremesa. Ninguém se põe a pensar na associação que acontece na cabecinha dela. E a gente vai absorvendo esse comportamento de maneira totalmente irreflexiva. Quando adultos, repetimos isso em todos os outros cenários. De algum modo viemos de uma cultura em que se legitimava a violência dos poderosos, das autoridades, daquele que tem mais força e capacidade de ação, e isso foi permeando todas as nossas relações. Temos as violências simbólicas, as diretas com uso da força, as institucionais, as que vivemos diariamente nas grandes regiões urbanas. Os estados não conseguem atender as necessidades das populações. Quando você fala para uma jovem que está com um diagnóstico possível de câncer mamário e que a radiografia só vai poder ser feita em três meses, simplesmente você está exercendo uma violência absurda. Como ela vai viver três meses com medo de ter uma doença? Há 30 anos fazer uma radiografia de mama era uma raridade, hoje sabemos que é uma indicação profilática. Nos defrontamos com situações muito complexas em que uma população cada vez mais educada começa a perceber e demandar direitos para os quais o estado não está preparado para atender. E isso obviamente cria conflitos e animosidade.

Portal Setor3 – E por que abordar os direitos humanos com um jogo?

LD – Porque hoje é a grande linguagem. Temos que ser realistas. O texto [da Declaração Universal dos Direitos Humanos], que logicamente tem uma belíssima redação, é escrito para adultos e com um vocabulário legal nem sempre cotidiano. Isso sem dúvida criaria mais distanciamento do que já existe. O jogo é a grande sacada. Sobretudo porque revela possibilidades de múltiplas reflexões. Nele, é preciso tomar cuidado para não tornar o processo competitivo. É um jogo com um convite reflexivo que vai ampliando as percepções do mundo e da história de cada um de nós.

Portal Setor3 – Vocês se inspiraram em outra iniciativa já existente?

LD – Eu tive experiência com jogos, mas não de direitos humanos. Sabemos que existem muitos trabalhos sobre o tema, sobretudo no Canadá, produções no sentido de disponibilizar de maneira facilitada os conceitos, as práticas e garantias, trabalhando o respeito à diversidade, integralidade e dignidade das pessoas. Mas não fomos em busca de alguma coisa para nos inspirar. Fomos atrás da própria declaração, a gente se debruçou com o professor George Barcat e, conceitualmente, ele e eu que criamos o roteiro. Como esse roteiro virou o jogo, foi o Senac que realizou isso com a Regina Paulinelli.

Portal Setor3 – Existem alternativas para tratar o tema de maneira pacífica e didática com jovens que não seja o jogo?

LD – Hoje se utiliza muito as rodas de diálogo em que as próprias pessoas, a partir de suas vivências, podem pensar em experiências concretas. É natural que a gente se sinta ofendido quando expulsado ou desrespeitado. Agora, ainda não adquirimos a competência coletiva para mostrar ao ofensor o dano que provocou. O que fazemos, via de regra? Alguém me ofende, eu ofendo. Alguém fala um palavrão, eu falo um palavrão mais estrondoso. Alguém faz um gesto obsceno, eu replico com três. Estamos muito na retaliação, no processo imitativo de comportamentos violentos. E veja que interessante: eu estou condenando esse ato porque o acho violento e desrespeitoso, mas utilizo exatamente os mesmos instrumentos para dar conta dele. É como estar doente e ainda criar condições para agravar a doença. É um processo infantil. Quando crianças, aprendemos por imitação, lógico, não temos outra maneira. Mas não levamos esse processo para a vida adulta. E achamos que isso é reparador, isso é o mais louco. Pelo contrário, essas atitudes agravam a situação. E o pior: o outro não tem a dimensão do desconforto que me provocou, do constrangimento a que me forçou, da humilhação à qual fui levada. Eu tenho que encontrar um modo de comunicar ao outro que estou ofendida, que estou me sentindo com baixa autoestima, que me senti desrespeitada. Eu preciso fazer esse sinal para o outro. O que vai fazer ele com isso, é dele, mas as possibilidades de reparar a situação são infinitamente maiores. Muitas vezes o outro sequer percebeu o que fez, ou fez porque estava estressado e tinha que descontar. Se pudermos falar dessas questões de maneira tranquila, de maneira madura, crescemos enormemente em civilidade, em convivência fecunda, rica e significativa. Penso que é o caminho. Existe outra experiência que é a da terapia comunitária, de um professor brasileiro do Ceará. Ele, como médico, percebeu que não era suficiente o atendimento do corpo, era muito mais urgente cuidar do estado emocional das pessoas. Então criou espaços de falas comunitárias entre as pessoas.

Portal Setor3 – Nesses espaços elas falam sobre o quê?

LD – Falam dos problemas concretos que têm. Ninguém dá conselhos. A escuta respeitosa e o acolhimento já se tornam uma cura. Nesse aspecto, Freud foi genial quando utilizou a palavra como meio de cura. Ele cria a psicanálise justamente porque entendeu que, a partir do momento que estamos falando e expondo a situação em que estamos engolidos, já vamos organizando a própria situação e até é possível que encontremos a saída. Somos filhos da linguagem. Nós, como humanos, temos a linguagem como construtora da nossa identidade. Veja que profundo é isso.

Portal Setor3 – A linguagem então é uma ferramenta de convivência e de promoção de direitos?

LD – Sem dúvida. Aquele que está coibido, seja por força da lei, dos sistemas autocráticos e ditatoriais, por conta do medo, ou aquele que está no silêncio, simplesmente não pode exercer sua humanidade.

Portal Setor3 – Quando um educador se depara com uma situação de violação de direitos ente jovens, dentro de uma sala de aula ou de um grupo de educação, como ele deve lidar com isso?

LD – A melhor maneira é sempre reunir as partes. Se foi algo muito grave, pedir para o ofendido que por favor verbalize o que está sentindo, para que o outro ouça. E a esse outro, perguntar: “Por que você fez isso? Quais foram as razões? Você está vendo as consequências de seus atos? ”. Algo muito importante é ensinar, desde criancinha, mesmo antes da alfabetização, que todos nossos atos têm consequências. E elas podem ser promotoras de vida ou inibidoras, benéficas ou maléficas. Como uma plantinha que a criança tem em casa e que assumiu a responsabilidade de cuidar. Se não é regada com a frequência necessária, é uma maneira evidente que a criança tem de ver que o descuido provoca consequências graves. É muito importante vincular desde pequenos que tudo que fazemos ou deixamos de fazer, permitindo por exemplo que um terceiro seja humilhado, cria consequências.

Portal Setor3 –Qual é a maior dificuldade de promover os direitos humanos no Brasil atualmente?

LD – Por um lado, uma visão extremamente conservadora, me atrevo a dizer até autoritária, de acreditar que os direitos humanos vieram para proteger o desvio de comportamento, dizer que vieram para proteger bandidos. É uma falta de conhecimento, de informação e de estudo sobre as dinâmicas sociais e sobre o próprio documento. Não posso impor o que é verdadeiro e significativo para mim para todas as partes, simplesmente porque não gostaria que fizessem isso comigo. É um princípio natural que viabiliza o convívio rico e saudável. Temos ainda, infelizmente, um grupo muito pouco instruído das verdadeiras consequências da Declaração Universal dos Direitos Humanos, das verdadeiras pautas que vão constituindo para facilitar a vida. Por outro lado, também temos uma diversidade de violências que não são construtoras nem desejáveis para ninguém. O fato de depredar objetos públicos como meio de expressão, por exemplo quebrar um ônibus, pichar monumentos, quebrar lixeiras da cidade ou telefones públicos, nada disso é instrumento eficiente para mostrar uma demanda, uma revolta. Com isso prejudico o usuário, aquela mesma população que estou querendo favorecer. A violência como meio de expressão não é eficiente, pelo contrário, nos faz regredir. Essas são as duas questões mais importantes. A violência nunca é uma linguagem reparadora, ela é sempre é violação de direitos. Ela visa a vingança. Uma geração mais nova já está começando a sacar isso. Eu me lembro muito bem nas manifestações de 2013 quando alguém queria colocar um cartaz ofensivo, a própria meninada já dizia: “não é para isso que viemos aqui”. Isso é muito bonito acontecendo espontaneamente. Me dá esperança de que novos mecanismos de comportamento estão começando a ser testados e implementados porque entendemos que os antigos já não dão conta da complexidade da sociedade contemporânea.

Materia original disponivel em: http://goo.gl/48EzkB