Maria da Conceição de Almeida (GRECOM/UFRN)
Dedico à Lia Diskin, Lucia Benfatti, Teresa Vergani
e Ana Cecília Espinosa. Quatro artesãs do ‘oitavo dia da criação’.
Cada vez que de forma individual ou coletiva professamos palavras e cultivamos bons pensamentos estamos agindo no sentido de regenerar as forças da conjunção e da fraternidade universal. Em outras palavras, estamos a reatualizar nossas reservas antropológicas em direção à uma Cultura de Paz e Não Violência.
Em maio de 1998, a Associação Palas Athena patrocinou a vinda do pensador francês Edgar Morin a São Paulo, para cumprir várias atividades. Entre essas atividades, e sob a coordenação do Prof. Edgard de Assis Carvalho, aconteceu, na manhã do dia 6 daquele mês de maio, no Teatro TUCA, uma mesa-redonda com a presença de Edgar Morin e colegas da física (Nelson Fiedler-Ferrara) e da literatura (Nelly Novaes Coelho). Fruto desse momento é o livro Ética, solidariedade e complexidade, publicado pela Palas Athena Editora no mesmo ano. Eu estava presente naquela mesa-redonda e, para falar sobre Cumplicidade, complexidade, (com)paixão, me fiz valer da metáfora da uma mala a ser organizada por nós para a nossa viagem rumo ao século XXI. Na ocasião me perguntava: Como cuidar da leveza da mala a ser transportada por nós, sem deixar de incluir nela os valores essenciais para refundar uma civilização marcada pela amorosidade estendida a todas as coisas; por atitudes de generosidade e irmandade entre os humanos; pelos sentimentos de impermanência e transitoriedade capazes de semear sementes de vida para as futuras gerações?
Hoje, passadas um pouco mais que duas décadas, e já imersos no novo século, podemos nos perguntar o que de melhor aconteceu na caminhada da espécie humana nos níveis individuais, coletivos, locais, nacional e planetário? Ao que parece, não há muito o que comemorar. O aumento da população mundial caminha pari passu com a desigualdade crescente, com um genocídio étnico e social sem precedentes, com a degradação da nossa Casa Mãe Terra e o comprometimento e crueldade com as espécies que coabitam conosco o mesmo espaço; com o consumo ostensivo dos ricos ao lado de populações que não têm sequer o pão de cada dia; com legiões de pessoas que saem de seus países, e se desenraizam de suas histórias; com uma crise que não se reduz a um problema sanitário, mas se desdobra na degeneração do espírito, da alma, da saúde mental.
Se esse é o cenário que vivemos, haveremos nós, por isso mesmo, que nos munirmos, ainda e sempre, de palavras e pensamentos capazes de transformar sementes de morte em sementes de vida.
Com essa intenção compartilho com vocês duas ideias/metáforas: a construção de castelos de areia; e o apelo para que nos tornemos artesãos do oitavo dia da criação do mundo.
Construtores de castelos de areia
Sentados diante do mar, um grupo de crianças se empenha em construir castelos de areia. Já vimos muito essa cena, já participamos desse cenário algumas vezes ou já nos descreveram essa atividade lúdica. As crianças vão aprendendo aos poucos o lugar ideal para que as edificações não desmoronem rapidamente. Esse lugar ideal está no meio do caminho entre a areia muito seca e as últimas ondas que deitam constantemente na praia. O conjunto arquitetônico que congrega os castelos exibe muralhas, diques, torres de observação, subterrâneos, alamedas. Para construir um complexo de tal monta, é necessário intenção, habilidade, desejo, cuidado, delicadeza. Só se edificam bons castelos na areia se as mãos se tornam veículos de onde flui a criatividade capaz de transformar areia em castelos.
Ao construir castelos de areia, as crianças parecem cumprir a função de nos relembrar o ritual da vida em sociedade. Construtores de sonhos, veículos de desejo – essa é a síntese da condição humana. Fazedores de castelos de areia. A única espécie viva que sonha acordada, como nos lembra Edgar Morin. Nada a estranhar, uma vez que, conforme Shakespeare, “somos feitos da mesma matéria que são feitos os sonhos”.
Advindos de pertencimentos diferenciados, imbuídos de tarefas cotidianas diversas, constituídos por singularidades psíquicas preciosas, todos reatualizamos, no nosso tempo, o ritual próprio aos construtores de sonhos. Estamos todos, continuamente, construindo castelos de areia.
Cabe perguntar: como os temos construído?
Por vezes, as muralhas escondem os castelos e nos tornamos encarcerados em nós mesmos, blindados ou autoimunes aos apelos da convivialidade com o outro que requer, como sabemos, compartilhar diferentes formas de viver. Outras vezes, os diques são demasiadamente fortes e permanentes, e, em vez de nos proteger para permitir a necessária autorreconstrução e metamorfose de nossas vidas, esses diques e muralhas nos impedem de ensaiar qualquer pulsão de criatividade ou, ainda, de desenhar caminhos de fuga para outros horizontes — sejam esses horizontes teóricos, pessoais, psíquicos ou coletivos. Alguns grupos de construtores de sonhos esquecem de multiplicar as alamedas que ligam os castelos entre si. Ou seja, que nos religam uns aos outros, e então ficam ilhados em seus próprios porões. Isso quer dizer que nem todo sonho opera confluência, encontro, multiplicação. Há bons sonhos, mas também sonhos sofridos a que chamamos pesadelos. Os construtores de sonhos, que somos nós, vivemos permanentemente o limite entre o sonho bom e o pesadelo, nas palavras de Edgar Morin, entre a “boa e má utopia”.
A partir desse patamar é possível problematizar a cultura, a sociedade em que vivemos e a sociedade que queremos construir e, por fim, propor uma ética do pensamento, capaz de sonhar por nossas próprias mãos. Uma tal ética supõe o princípio da “sustentável leveza do conviver” como propõe Edgard Carvalho na palestra que iniciou essa mesa de hoje e ela só será eficaz se nutrida por atos individuais e, simultaneamente, por práticas sociais que façam jus ao que há de mais complexo e mais precioso na nossa contingência de sapiens-sapiens-demens. Ou seja, essa ética requer que nos tornemos sonhadores de bons sonhos.
Artesãos do oitavo dia
Sonhos comuns, horizontes convergentes, ações individuais, apostas coletivas, desejos compartilhados, sentimentos de compaixão e de parentesco com todas as coisas do mundo (vivas e não vivas). São essas reservas antropológicas da condição humana que operam, fundamentalmente, comunicação e compreensão. Por meio dessas reservas arcaicas poderemos compreender uma metáfora construída pelo astrofísico Hubert Reeves (2002), e seu apelo para que assumamos o lugar de ‘artesãos do oitavo dia’.
Explico: numa alusão ao inacabamento e permanente evolução do universo, Reeves se vale do mito judaico-cristão que conta o nascimento de todas as coisas em sete dias. Como sabemos, o livro do Gênesis conta que o início da criação do mundo se deveu ao sentimento de solidão de um demiurgo, e ao seu desejo de não permanecer sozinho na escuridão do espaço vazio. Esse sentimento de solidão talvez esteja muito próximo da solidão coletiva que caracteriza o nosso tempo, mas que pode se transformar no desejo de refundar uma ‘política de civilização e de humanidade’, sempre ressaltado por Edgar Morin. Edgard Carvalho fez alusão, em sua palestra, a uma “Linguagem Elementar, da qual precisamos com vital urgência”. Essa linguagem pode se constituir no alimento primeiro do educador, isto é, de todos nós, para cumprir nossa missão de arquitetar, coletivamente, uma sociedade mais conjuntiva, solidária, afetiva e um pouco mais feliz.
Contudo, não somos demiurgos, deuses. Somos sujeitos de carne e osso, sujeitos da falta, do paradoxo e da contradição. Ao mesmo tempo egoístas e altruístas e, sobretudo, marcados pela ambiguidade da condição humana tão bem expressa pelo poeta português Fernando Pessoa, quando diz: “a mão que afaga é a mesma que apedreja; a boca que beija é a mesma que escarra”.
Diante, pois, da contingência da condição humana que conjuga a boa utopia, mas também as forças da regressão, não devemos, como educadores, ocupar o lugar de salvadores do mundo, de detentores de verdades irrevogáveis. Daí porque é importante manter o alerta de Edgar Morin, quando diz não ser possível construir o melhor dos mundos, mas tão somente um mundo melhor.
Movidos pelo desejo de construção de uma sociedade-mundo arquitetada pelas forças da conjunção e não da disjunção; da solidariedade e não da competição; e da consciência da indissociação entre local e global, haveremos de nos nutrir da humildade, mas também da ousadia e de um trabalho obstinado e incansável de recriação do mundo, da vida, da educação, da sociedade.
O artesão é aquele que transforma a matéria em objeto utilitário, estético ou bom para pensar. É aquele que religa fragmentos em uma totalidade, mesmo que aberta. Aquele que manuseia o que está à sua volta, retira as partes mortas e interfere ativamente na sua transformação. Ele reconhece a distinção, mas não a oposição entre imaginação e realidade, porque sabe que sua obra material é produto da imaginação e do sonho. O artesão é aquele que expõe, com maestria e magnitude, a criatividade – essa dádiva maior da condição humana. É, sobretudo, aquele que sabe ver bem o mundo à sua volta; que percebe o que precisa ser transformado, o que está em estado de necrose e precisa de regeneração. Paciência, ousadia, persistência, consciência da imperfeição e autocrítica parecem ser as ferramentas e os materiais do artesão do conhecimento, do educador.
Como as crianças que constroem seus castelos de areia, temos nós que nos valer do irresistível desejo humano de recomeçar nossa obra todo dia! Somos os artesãos do oitavo dia da criação!
E, se nossa ousadia e prudência requerem mais tempo do que nos é dado a viver, não nos deixemos abater. O sentimento de impermanência favorece nossa disposição para criar novos horizontes para as futuras gerações. Façamos nossa parte e escutemos as palavras de Ernesto Sabato no poema Idade.
“O que se pode fazer em oitenta anos? Provavelmente, começar a dar-se conta de como haveria de viver e quais são as três ou quatro coisas que valem a pena.
Um programa honesto requer oitocentos anos. Os primeiros cem seriam dedicados aos jogos próprios da idade, dirigidos por aios de quinhentos anos; aos quatrocentos anos, terminada a educação superior, se poderia fazer algo proveitoso; o casamento não deveria ocorrer antes dos quinhentos; os últimos cem anos poderiam ser dedicados à sabedoria.
E ao cabo dos oitocentos anos, talvez se começasse a saber como se deveria viver e quais são as três ou quatro coisas que valem a pena. Um programa honesto requer oito mil anos.
Etc.”
Sobre a autora
Maria da Conceição de Almeida – Antropóloga. Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM; Coordenadora pela UFRN/Natal do primeiro ponto brasileiro da Cátedra Itinerante Edgar Morin para o Pensamento Complexo\UNESCO.