Quando estereótipos do inimigo incitam comportamentos hostis e alimentam a cultura da guerra, é essencial criar ambientes humanos que promovam a escuta mútua e a compaixão
Por Madza Ednir
Jean-Marie Muller. Não violência na educação. Palas Athena. 110 pp.
Em 2002, o filósofo francês Jean-Marie Muller, criador do Instituto de Resolução Não Violenta de Conflitos, escreveu, a pedido da UNESCO, o livro Não Violencia na Educação. O contexto desta encomenda foi o inicio da “guerra ao terror” liderada pelos Estados Unidos, após cerca de três mil vidas serem interrompidas pelo ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington, a 11 de setembro de 2001. Os quatro aviões que se chocaram contra os prédios eram pilotados por jovens extremistas islâmicos, reagindo ao que viam como o terror desencadeado em seus paises pelo Estado americano – “o Grande Satã”. A tragédia ocorria, ironicamente, no inicio da Década Internacional por uma Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo, proclamada em novembro de 1998 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e que iria vigorar de 2001 a 2010. A UNESCO, braço educativo da ONU, deve ter percebido que a indignação gerada no Ocidente pelo atentado terrorista, poderia transformar-se em violências contra milhares de pessoas, consideradas como inimigas por seguirem o Islã. E convocou Muller a escrever um livro-ferramenta, que poderia ser usado por gestoras e gestores educacionais, educadoras e educadores formais e não formais do mundo inteiro, para promover a prática da paz e da não violência.
Traduzido, editado (2006) e reeditado (2017) no Brasil pela Editora da Associação Palas Athena, o texto de Muller é um excelente instrumento para quem ajuda a criar respostas sistêmicas e não violentas à violência. Este é um desafio imenso. Afinal, somos herdeiros, como as demais nações do planeta, de “uma tradição que abriu espaço descomunal para a violência” conforme diz o autor na p. 99, e estamos imersos em uma cultura que se caracteriza por “não perceber a necessidade da não violência e obstinadamente ignorar os métodos não violentos de resolução de conflitos”, conforme p. 100.
É o que se depreende das propostas que emergiram de representantes de governo e sociedade diante do aumento de ataques a escolas e creches (três em 2019, quatro em 2022, e dois nos primeiros meses de 2023). Elas não se endereçavam às causas profundas das violências. Limitavam-se a sugerir o aperfeiçoamento de medidas de repressão/contenção já existentes, como policiamento, instalação de alarmes, detetores de metais e câmeras de vigilância. A novidade foi a enxurrada de projetos de lei distópicos (felizmente não aprovados), autorizando professoras e professores a portarem armas nas salas de aula.
Outras importantes vozes, no entanto, se ergueram nas universidades, nos movimentos sociais, nas organizações da sociedade civil e mesmo dentro dos governos, contestando essa abordagem simplista e superficial. Elas lembram, como faz Jean-Marie Muller em seu livro Não violência na educação, que eliminar as violências contra a escola (e da escola) exige disposição para reconhecer, confrontar e mudar a cultura de violência entranhada na estrutura economica, social, politica, jurídica, religiosa e comunicacional da sociedade à qual se vincula o sistema educativo. Para Muller, construir uma cultura não violenta é sinonimo de ampliar e fortalecer a democracia na escola e fora dela. Uma democracia garantidora de direitos para todos, com espaços para o diálogo, para o dissenso, para a ação coletiva capaz de restaurar e regenerar o tecido social .
É preocupante perceber o quanto é forte a crença de que a violência se justifica e é necessária quando se defende uma “boa causa”. Jean-Marie Muller reconhece que “em nosso ambiente cultural, a simples menção da Não Violência provoca uma avalanche de argumentos para diminuir seu significado e relevância”. Quem propõe alternativas não violentas para lidar com quem pratica violências, recebe acusações de estar “passando a mão em cabeça de bandidos” ou “passando pano para criminosos”. É como diz Muller: “A Não Violência é uma convicção de poucos, que vivem em uma sociedade em que a grande maioria, até agora, não partilha dessa convicção”.
Somos ainda poucos os que estamos convictos, como Muller, de que a violência nunca é solução, é o problema; de que a resposta a uma ação violenta deve ser necessáriamente não violenta; de que a violência começa quando termina o diálogo. Mas, quem sonha um futuro em que seremos muitos, seremos maioria, vai ganhar muito ao ler, reler e debater o livro do filósofo francês. Destaco, em seguida, as ideias que mais me impactaram, à luz do atual contexto brasileiro.
- A democracia, ao pressupor diálogo, afina-se organicamente à não violência.
Construir democracias onde, além de eleger representantes, as pessoas aprendem a reconhecer-se como iguais, decidem unir-se e agir juntas, para construir um futuro comum, é construir uma cultura não violenta. Isso porque democracias fortes promovem diálogo e igualdade em dignidade e direitos para todos – o grande antídoto para a violência. Diálogo implica a Escuta Ativa do Outro, inclusive de quem deflagrou a ação violenta. Tentar compreender o ponto de vista do Outro não significa concordar com ele. - Tratar o Outro de forma não violenta indica democracia real em ação.
O Outro, diz Muller, é aquele cujos desejos, interesses e comportamentos colidem com os nossos. Pode pertencer a outra nação, a outra comunidade, a outro grupo religioso ou politico. É visto como alguém de um mundo diferente do nosso.
Quando as mentes são dominadas por nacionalismo, racismo ou qualquer forma de fundamentalismo, o Outro é considerado o inimigo a ser odiado, silenciado, trancafiado e no limite, morto – eliminando-o simbolicamente ou de fato . A violência contra o inimigo – que não é visto como um ser humano contraditório, complexo, mas como uma figura unidimensional, estereotipada -seria uma “violência necessária, legítima e honrada”.
Quando, em situações de conflito, ou mesmo de violência, os princípios democráticos prevalecem, nota-se a firme recusa de enquadrar o Outro no estereótipo do inimigo. O diálogo – difícil, pedregoso – continua em busca de um acordo, um pacto possível, em que o desejo de estabelecer um certo equílibrio, benéfico à toda a coletividade, seja maior que o desejo de se impor ou de se vingar.
- Construir democracia significa valorizar o conflito criativo, o confronto não violento.
Onde há vida e, portanto, movimento, há conflito de desejos, interesses, disputa por espaço e poder. Apenas quando opressores conseguem impor total submissão aos oprimidos, não há conflito. A ação política democrática baseia-se em debate, em conversas difíceis, em atrito. “Fugir de uma situação de conflito, diz Muller, é abandonar seus direitos, é renunciar a ser reconhecido pelo Outro”. Para ele, o confonto não violento exige uma agressividade que, sem ser destrutiva, é o oposto da passividade e da resignação. É uma energia criativa, de audácia e coragem – inspirada em Gandhi, Luther King, Mandela – que se expressa coletivamente em ações pacíficas e impactantes contra as injustiças. A Não Violência enfrenta o poder, não se curva a ele.
- A ação não violenta coletiva é essencial para eliminar a violência estrutural, que mantém seres humanos em situação de alienação, exclusão, opressão.
Promover a não violência exige combater as ideologias comprometidas com a discriminação, a exclusão e a opressão. O desafio é fazer isso sem tratar como inimigos e não humanos os portadores de tais ideologias, sem exercer violência contra os violentos. De acordo com Muller a defesa de uma boa causa – seja ela a democracia, a justiça economica social e ambiental, o antirracismo … – não justifica a violência que fere a humanidade de quem a sofre e de quem a exerce. As pessoas que cultivam a Não Violência tomam a decisão de não imitar a violência do agressor. Lutam por fazer avançar os direitos de todos, confrontam os oponentes sem capitular diante do poder, nem se deixar contagiar pelo ódio.
O confronto não violento com a violência estrutural que mantém seres humanos em situação de alienação, exclusão e opressão se faz por meio da desobediência civil, acompanhada de manifestações coletivas, politicas, culturais e artísticas. Contra a violência muda a palavra, isto é, contra a linguagem da brutalidade, outras linguagens, por meio das quais o medo, a raiva, a indignação, a frustração possam ser sublimados, transformados e corajosamente comunicados ao mundo de modo a apresentar alternativas à injustiça, e a diminuir o ódio, não aumentá-lo . A resposta à violência precisa ser a tentativa de restabelecer a comunicação. A construção da paz é indissociável da construção da democracia participativa, da ampliação de espaços abertos à conversação entre os diferentes e ao conflito que nasce do choque entre perspectivas diversas. É assim que o novo pode emergir. Porisso, diz Muller, nossa sociedade se tornará mais democrática e menos violenta quanto mais espaços de diálogo forem criados, nas escolas, nas famílias, nas organizações, onde as pessoas sintam-se escutadas, incluídas e motivadas a se unir para enfrentar pacificamente o poder, implementando a justiça social, economica e ambiental.
Madza Ednir é uma educadora e comunicadora brasileira, comprometida com o fortalecimento da democracia e da paz. Consultora sênior do CECIP- Centro de Criação de Imagem Popular- RJ. Atuou como professora alfabetizadora, coordenadora e diretora em escolas públicas da periferia de São Paulo, espaços onde colocou em prática os princípios de uma Educação Emancipadora inspiranda em Paulo Freire. É autora, coautora e editora de inúmeras publicações sobre Educação e Direitos de Cidadania. Atualmente , está empenhada na disseminação da abordagem de Ativismo de Histórias contida da ativista estadunidense Mary Alice Arthur, que contribui para superar a ” ilusão da separação”, aumentando a consciência das pessoas de que podemos moldar as histórias que nos moldam e criar futuros de solidariedade, justiça e paz.