No exuberante imaginário da literatura jainista encontramos uma estória em que duas crianças, uma cega e a outra perneta, estão brincando numa floresta. Elas não se conhecem, e estão distantes uma da outra. Inesperadamente, o fogo começa a tomar conta da mata. A fumaça espalha a notícia ? aves, insetos, animais saem em disparada. As crianças, entretanto, não se mexem, medo e incerteza as dominam. Gritam por socorro, e pelos gritos se encontram. Querem fugir do fogo, mas como? Suas falas, entrecortadas por soluços, tecem e desmancham planos. De pronto, numa sinergia que as abraça, o menino perneta pula sobre os ombros da criança cega, e esta lhe pede que oriente seus passos. Graças à altura proporcionada pelo corpo do colega, o perneta consegue ver as clareiras através da fumaça, e saem triunfantes da floresta.

Esse conto, aparentemente infantil, encerra um repertório de valores e princípios que permeiam a maioria das correntes filosóficas que se desenvolveram no Sudeste Asiático. Os grandes temas continuam sendo: viver e deixar viver; interdependência; visão sistêmica da realidade; ética como instrumento de convivência; unidade corpo/mente; possessividade e apego como alavancas de conflito e sofrimento; auto-referência como via de exclusão; e pluralidade de faces na percepção da realidade.

Sobre este último tema, o Prof. Leonard Swidler ? teólogo cristão dedicado ao diálogo inter-religioso ? desenvolve um estudo muito oportuno a respeito das características da afirmação da realidade sustentadas na cultura ocidental até o século XIX. Elas eram absolutas, estáticas e excludentes, provocando durante séculos a depreciação da produção espiritual, científica, filosófica e cultural do resto da humanidade. A apropriação do critério de verdade criou domínios de ações imperativas que moldaram o gênio criativo de gerações inteiras.

As descobertas científicas do século XX e o estudo de culturas e crenças diferentes, favorecidos pelas migrações em massa, quebraram esse monopólio da verdade provocando uma mudança radical de percepção. “Esse novo paradigma que está nascendo”, diz Swidler, “entende todas as afirmações sobre a realidade, especialmente sobre o sentido das coisas, como sendo: 1) históricas; 2) praxísticas ou intencionais; 3) perspectivísticas; 4) limitadas pela linguagem ou parciais; 5) interpretativas, e 6) dialógicas”. Isso nos leva a concluir que o único meio de que dispomos para ampliar a nossa percepção de realidade é aproximar-nos e dialogar com outros, sejam eles indivíduos, culturas, disciplinas, organizações ou redes cognitivas.

 

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