Denise Ribeiro – Palas Athena

 

Uma longa jornada pelo mundo do conhecimento e das emoções, da filosofia e do direito, da psicologia e da história. Foi passeando por todas essas disciplinas que o professor austríaco Wolfgang Dietrich comandou o seminário internacional “Teoria e Prática do Conflito – Como lidar com ele em cenários plurais e democráticos”, na Palas Athena, em São Paulo. Durante um dia e meio (nos dias 31 de outubro e 1 de novembro), cerca de 60 pessoas viveram uma rica experiência ouvindo os relatos de Dietrich, detentor da Cátedra UNESCO de Estudos de Paz na Universidade de Innsbruck (Áustria) e diretor do Programa de Mestrado em “Paz, Desenvolvimento, Segurança e Transformação de Conflitos Internacionais” na mesma universidade.

Partindo do princípio de que o conflito é um elemento constitucional da vida humana, o professor afirma que conseguimos resolver racionalmente quase 90% dos conflitos nos quais nos envolvemos de forma suave sem nos darmos conta disso. “O conflito não é um problema entre indivíduos, mas entre relações. Ele sempre tem um componente interpessoal ou intrapessoal”, ensina.

Toda a história da teoria do conflito foi construída com o objetivo de tentar dissecar os motivos que têm levado a humanidade fracassar naqueles 10% de casos não resolvidos. “Os conflitos movem o mundo. Mas a nossa racionalidade é apenas uma das camadas que nos moldam: nossa família, nossas experiências, nossa ideologia, nossa sexualidade, nossa necessidade de pertencimento, nossa espiritualidade”, explica.
Segundo ele, a comunicação incongruente – aquela em que fala, gestual, tom de voz e linguagem corporal “dizem” coisas diferentes – é o maior protagonista dos conflitos, porque envia mensagens dúbias, deixando o outro confuso e até doente. “Como somos seres estritamente relacionais, a comunicação incongruente causa bloqueios em nossa comunicação. O conflito surge de relações disfuncionais e de estilos de comunicação incongruente praticados por uma ou mais partes de um sistema”.

De acordo com o professor, por conta das inúmeras camadas que nos moldam, somos levados a reagir de forma defensiva a situações incômodas ou dolorosas, nos apoiando na comunicação incongruente. “Há quatro tipos de estilos, basicamente, que usamos para nos proteger da dor ou do confronto: o evasivo, o acusador, o apaziguador e o racionalizador. A boa notícia é que não somos um estilo e temos liberdade para escolher mudar, ao perceber que essa comunicação defensiva não produz efeitos agradáveis”. E alerta: “O problema é quando há um bloqueio permanente em uma dessas camadas”.

Marcos históricos

Dietrich discorre sobre contextos históricos que contribuíram para o desenvolvimento das teorias do conflito e da paz. Diz que nos documentos políticos e acadêmicos são comuns os termos prevenção de conflitos, gerenciamento de conflitos, solução de conflitos, e provoca: “Damos as boas-vindas aos conflitos nas relações humanas, porque eles nos fazem crescer. Se eles movem o mundo, por que temos de preveni-los, gerenciá-los, resolvê-los?”.

O mesmo acontece com a paz, que sempre surge acompanhada de expressões como: manutenção da paz, imposição da paz, construção da paz. Essa construção começou em 1919, quando numa reunião em Paris, foi criada a disciplina de Relações Internacionais, com o intuito de transformar a mente humana (era o fim da Primeira Guerra) na direção da paz. Os primeiros professores eram historiadores, sociólogos, advogados, filósofos.

Isso não impediu que o mundo produzisse uma Segunda Guerra, incrementada com todos os requintes de crueldade ao seu alcance. Depois dos horrores perpetrados pelo holocausto e pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki, novamente os idealistas se movimentaram e foi fundada a Organização das Nações Unidas, sob a égide do “nunca mais” queremos guerras.

Mas é difícil manter a paz, quando os governantes, especialmente no hemisfério norte, passam décadas considerando subdesenvolvidos países com estilos de vida antagônicos aos seus. É a visão de mundo dos “progressistas” e “civilizados” europeus e norte-americanos que rotulam de “atrasados” os islâmicos, africanos, latinos, hindus. E, dentro dessa lógica, mandar exércitos para civilizar à força esses “bárbaros” é totalmente legítimo. “No nosso sistema, o mais importante que temos de pensar é na nossa estrutura mental, na maneira como incluímos e excluímos pessoas, povos, nações”, diz.

Violência estrutural

O professor austríaco dá, ainda, um mergulho nas correntes filosóficas alternativas correndo paralelamente a esse cenário. “O estruturalismo foi a consequência mais positiva da discussão, com destaque para Johan Galtung, um jovem norueguês que passou um ano na cadeia por se recusar a servir o exército de seu país e que hoje, aos 84 anos, ainda é muito rebelde”, brinca.

Enquanto no final dos anos 60 milhares de protesto pela paz se multiplicam em toda a parte, o jovem Galtung termina de burilar sua teoria sobre violência estrutural na casa de Gandhi, na Índia. Lançou-a em 1972, aproximando-se dos revolucionários do mundo, especialmente Che Guevara, de quem era bem próximo. Eles encontraram em Galtung alguém que dava sustentação teórica à revolução que empreendiam contra a pobreza, as injustiças sociais, a desigualdade.

Para Galtung, violência cultural se constitui em tudo aquilo que impede as pessoas de realizarem todo o seu potencial. Para ele, paz é também a ausência de violência estrutural. “Violência estrutural tem muito a ver com justiça. Falamos de justiça porque percebemos a injustiça. A justiça não pode ser pensada isoladamente e sempre vem carregada de uma carga moral. Ela só é um tópico quando a injustiça se faz presente”, argumenta Dietrich.

Segundo ele, o termo justiça precisa ser restaurado, renovado, redefinido. “A paz sem justiça também é fantasia. Temos de ter cuidado com a maneira como a aplicamos na linguagem convencional, porque é a linguagem convencional que forma a mente das pessoas”, diz.

Em 1992, Galtung elabora o conceito de violência cultural, segundo o qual aspectos culturais (ou todos os tipos de crença) podem ser usados para justificar a aplicação da violência direta ou estrutural. É a violência cultural que cristaliza estereótipos – os nordestinos são atrasados, os ciganos costumam roubar, os baianos são preguiçosos, mulher gosta de apanhar, homem não chora.

“Nós, seres humanos, somos natureza e somos também cultura. Nos conflitos, por causa das experiências que nos constituem, as coisas podem ficar muito feias, nos levar à agressão. Como consequência da briga, nós dois ficaremos traumatizados. O trauma, quando não é digerido de forma adequada, fica no nosso organismo por muito tempo, de três a quatro gerações. O trauma não processado, alimenta a cultura. Por causa da guerra da Bósnia, sérvios e croatas, que antes casavam entre si, não conseguem mais viver juntos”, analisa.

A boa notícia é que existem métodos para tentar romper esse ciclo de violência. E eles se pautam pela constituição da UNESCO, adotada em Londres, a 16 de novembro de 1945, da qual reproduzimos um trecho: “Uma vez que as guerras começam na mente dos homens, é na mente dos homens que se devem construir as defesas da paz”.

Clique aqui para ouvir o áudio do seminário “Teoria e Prática do Conflito – Como lidar com ele em cenários plurais e democráticos”